sábado, 22 de dezembro de 2007

O leite que derrama - aos baristas

Este artigo é dedicado a um texto do físico e gastrônomo Hervé This, retirado de seu livro “Um cientista na cozinha” de 2006, e que serve de base para entender melhor as mudanças de temperatura do leite.

“Uma das dificuldades maiores da ciência é a justa apreciação das situações que se quer compreender? Para saber como a sopa esfriava, nós a assimilamos à água, porque as trocas de calor na superfície, únicas responsáveis pelo esfriamento, são idênticas para a sopa ou para a água. Se estivéssemos interessados nas propriedades de escoamento, só uma sopa muito fluida poderia ter sido assimilada à água. Tal como o poeta, o físico e o químico têm de controlar as metáforas.
Para compreender por que o leite derrama, podemos considerá-lo semelhante à água? É claro que não, pois a água que ferve não derrama. Manifestamente, o leite é um líquido mais complexo que a água.Uma pitada de observação nos revela sua natureza oculta: deixemos o leite repousar; sua superfície transforma-se em nata (ou creme de leite, emulsão que se forma naturalmente na superfície do leite), isto é, numa matéria gordurosa (já que a nata batida dá a manteiga). Sob que forma a nata se encontrava no leite? Uma observação do leite ao microscópio nos teria revelado inúmeros pequenos glóbulos, dispersos na água, desviando a luz em todas as direções, são responsáveis pela cor branca do líquido.
Naturalmente, o leite não tem apenas água e gordura, pois os dois corpos não se misturam, manteiga derretida e água ficam separadas (na ciência, diz-se que formam duas fases); e com manteiga não derretida, o divórcio é pior ainda. De fato, o leite contém igualmente proteínas e diversas outras moléculas “tensioativas”, isto é, que tem uma parte solúvel na água e uma parte solúvel na matéria gordurosa. Ao colocar em contato com a água sua parte sua parte solúvel em gordura, estas moléculas tensioativas formam um revestimento que delimita os glóbulos de matéria gordurosa, estabiliza-os e garante sua dispersão na água. Esta estabilização é fortalecida pelas moléculas de caseína (85% das proteínas do leite são caseínas) que, na superfície dos glóbulos, garantem uma repulsão mútua destes porque eles são carregados negativamente.
Todavia, as repulsões devido à caseína, sobretudo, não bastam para evitar a coalescência ocasional dos glóbulos, isto é, sua fusão: num líquido, os glóbulos estão em movimentos incessantes, em ritmos variáveis; os mais rápidos conseguem encontrar-se e fundir-se em glóbulos maiores. Ora, quanto maiores os glóbulos, mais as forças de repulsão tornam-se fracas em relação ao empuxo de Arquimedes. Progressivamente, os glóbulos crescem e sobem: a nata se estabelece na superfície da emulsão.
Quando se esquenta o leite, o efeito é ainda mais rápido, pois os glóbulos ficam mais rápidos: seus choques provocam mais vezes sua fusão e, à temperatura superior à 80°C, a caseína coagula. Esta coagulação (agregação de proteínas provocada por um aquecimento ou por uma acidificação, por exemplo) tem dois efeitos: a caseína que coagulou não protege mais os glóbulos, e ela forma uma camada contínua na superfície do leite, a pele. O vapor de água que se forma no fundo da panela, progressivamente retido sob a pele, levanta esta última.....e se derrama sobre o fogão com um abominável cheiro de ovo podre, cheiro proveniente da reação dos átomos de enxofre existentes nas proteínas do soro do leite com os íons hidrogênio da solução, formando o sulfeto de hidrogênio que possui esse cheiro”.

3 comentários:

espressa-mente! disse...

interessante o texto..valeu! cheguei ate ele/você pesquisando no google sobre leite, caseina, barista...

Darlan M Cunha disse...

Prezado Marco de la Roche,

gostei sobremaneira de sua maneira de apresentar textos acerca de delicadezas, de delícias.

Aproveito para dizer-lhe que abri um linque, na minha página AEIOUAR, no multiply.com, para o seu artigo referente à gloriosa Caipirinha.

O linque está sob o título DRINKS AROUND THE WORLD (1): CAIPIRINHA (Brasil)

Parabéns pela página bem cuidada.

Darlan M Cunha

Ed disse...

Muito interessante seu texto sobre leite. Nesse carnaval, para aprender mais sobre vaporização acabei aprendendo bastante por aqui...

Complementando seu conteúdo, sugiro tb a leitura do artigo do James Hoffman sobre vaporização.. (em inglês)

http://www.jimseven.com/2006/06/13/foams/

Valeu pela aula mestre..

Abraços,

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